quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Tecnologia versus pureza

Iniciar um novo ano força-nos, regra geral, a meditar sobre o futuro. Admitir a utilização de tecnologia no futebol, como instrumento de apoio ao trabalho dos árbitros, não é tópico novo. Mas apenas recentemente se materializaram os suportes tecnológicos que permitem uma aplicação generalizada dos mecanismos idealizados para abolir alguns erros de arbitragem. Os órgãos que regulam o futebol mundial estão a debruçar-se sobre o assunto e urge discuti-lo porque uma primeira regulamentação não deverá tardar muito.

Um pouco ao estilo do referendo sobre o aborto, as opiniões dividem-se em dois grupos: Os que defendem que o caminho é embutir progressivamente a tecnologia no desporto-rei e os que, radicalmente, se opõem a qualquer intromissão no direito de errar, intrínseco da arbitragem. Antes de se concluir quem é dono da razão, importa identificar em que situações a tecnologia está apta a beneficiar o futebol e, ainda, em que áreas (se alguma) da competência dos árbitros é imperativo substituir a probabilidade do erro humano pela infalibilidade do juízo computacional.


Virtudes e limites da tecnologia

Vejamos, então, de que forma a tecnologia pode ser aplicada numa partida de futebol. É plausível a sua intervenção de três formas:
– Utilização de sensores e outras soluções tecnológicas para determinar se a bola ultrapassa os limites do campo.
– Utilização de diversas soluções tecnológicas para avaliar as situações de fora-de-jogo.
– Utilização de imagens televisivas para auxiliar os árbitros na avaliação dos lances polémicos, como jogadas em que há dúvidas se a bola ultrapassa a linha de golo, foras-de-jogo e faltas que impliquem a marcação de grandes penalidades ou livres perigosos.

A utilização de sensores para determinar se a bola ultrapassa os limites do campo é uma solução tecnológica de implementação simples e com custos associados relativamente baixos. Esta tecnologia é amplamente empregue nos nossos dias, desde sistemas de alarme a instrumentos de medição, fazendo uso de micro-ondas, lasers, etc. O principal empecilho logístico para a indústria do futebol, ocorre da obrigatoriedade de os fabricantes de bolas colocarem um chip no interior de cada uma, de modo a que seja reconhecida por sensores que criam zonas de controlo paralelas às linhas do campo.

Outra proposta para ajudar a resolver os problemas relacionados com a observação da localização da bola relativamente às linhas laterais, finais e de golo, foi apresentada pela Adidas. A Teamgeist II (ver foto) emana um campo magnético para fornecer informação em tempo real a um computador. O software interpreta a informação e determina o posicionamento da bola, informando o árbitro quando esta ultrapassa as linhas que delimitam o campo. A implementação destas tecnologias no futebol parece estar apenas dependente da vontade de quem manda.

Se a tecnologia da bola chipada combinada com um conjunto de sensores pode determinar, com certeza, se esta ultrapassa os limites do terreno de jogo, o mesmo princípio pode ser aplicado para avaliar as situações de fora-de-jogo. Neste caso, uma peça do equipamento dos futebolistas é dotada de um chip. O passo seguinte é desenvolver um software que detecte a posição da bola e dos jogadores em campo, distinguindo os membros de cada equipa, de forma a determinar se o futebolista que recebe o esférico está ou não em offside, no momento em que este deixa o contacto com o jogador que efectuou o passe. Este método, foi proposto pela primeira vez em 2005, por um finalista de uma universidade inglesa. Até ao momento, no entanto, nao é conhecido se há organizações a desenvolver o sistema.

Existem mais propostas para ajudar os árbitros auxiliares na análise destes lances, entre elas, a de uma empresa holandesa que criou um sistema de apoio visual capaz de gerar uma linha virtual, perpendicular às linhas laterais do campo, visível apenas para o árbitro auxiliar. No fundo, o mesmo sistema usado nas transmissões televisivas para ajudar a percepcionar o fora-de-jogo, está à disposição dos bandeirinhas.

Relativamente ao uso de imagens televisivas como apoio à tomada de decisão dos árbitros, a nível tecnológico, não são necessárias grandes explicações. Esta é uma solução já implementada em ligas altamente profissionalizadas, como as de basquetebol e futebol americano dos Estados Unidos. Porém, é impossível imitar estes exemplos quando consideramos a logística do futebol. Como podemos exigir ao Tourizense da II Divisão série C, que instale uma dúzia de câmaras no seu estádio, a captar imagens do jogo e que os árbitros possam visionar essas imagens, incluindo repetições de diferentes ângulos, quase em tempo real? O aparato de equipamentos e consequente avultado investimento financeiro, implica que seja impossível banalizar esta plataforma tecnológica no desporto-rei.


Errar é benéfico?

Depois de identificadas as áreas de possível intervenção da tecnologia no futebol, devemos debater em que situações urge salvaguardar a probabilidade do erro associada ao elemento humano e em que cenários o erro prejudica o espectáculo e deve ser erradicado. Grandes penalidades, foras-de-jogo e lances em que surgem dúvidas sobre se a bola ultrapassa ou não a linha de golo, são os que podem influenciar directamente o resultado final de uma partida. Não há dúvidas que estas três situações de jogo, quando mal ajuizadas, podem contribuir para adulterar a verdade do jogo.

Nos casos de fora-de-jogo e bola versus linhas do campo, não existe espaço para qualquer subjectividade de interpretação por parte das equipas de arbitragem. As leis que regulam estas situações de jogo são, essencialmente, de cariz computacional... zeros e uns, sim ou não. E é amplamente reconhecido que o cérebro humano não consegue avaliar correctamente os fora-de-jogo, quando estes resultam de ataques rápidos. Os árbitros auxiliares avaliam estas situações de acordo com a impressão que o lance lhes causou. O mesmo se pode afirmar sobre lances em que, por exemplo, a bola embate com velocidade na barra da baliza e ressalta para perto da linha de golo. Foi dentro ou fora? É golo ou não? Muitas vezes, nem pela TV e em câmara lenta conseguimos avaliar com certeza estes lances. Será que, nestes casos, interessa preservar a probabilidade de erro humano, quando as próprias leis que regem estas situações não dão espaço para qualquer tipo de subjectividade na sua interpretação?

Já no ajuizamento de faltas perigosas, o panorama é diferente. Obviamente que a definição de falta, por si só, não acarreta grande subjectividade, só que, no campo, as circunstâncias do jogo ou mesmo o estilo de arbitragem podem originar diferentes interpretações da lei. Por exemplo, em Inglaterra é raro, se não mesmo inadmissível, a marcação de livres indirectos por pé em riste. Já em grande parte do resto do Mundo, um pé em riste efectuado dentro da área resulta na marcação de um livre indirecto que se transforma automaticamente num lance de perigo. Quando consideramos a marcação de faltas e o uso de imagens televisivas para ajudar os árbitros na tomada de decisão, não vamos, por certo, conseguir encontrar uma fórmula do agrado de todos. Mesmo com recurso a tecnologia para ajuizar os lances, o factor humano e a subjectividade interpretativa das leis, resultam numa imprevisibilidade de opiniões que importa defender.


Bom-senso para definir um rumo

Olhando para os dois lados da barricada, salto com ligeireza para a trincheira dos que acham que a tecnologia deve, progressivamente, ser introduzida como instrumento de apoio ao trabalho da arbitragem. Não compreendo como se defende a pureza do jogo a todo o custo, quando todas as semanas são anuladas jogadas de golo iminente, apenas porque não é humanamente possível ajuizar com certeza esses momentos. E existem as ferramentas para erradicar os erros...

Hoje em dia, é possível avançar um cenário idílico para o uso da tecnologia no futebol e que salvaguarda a pureza do desporto-rei. Esse cenário implica que a máquina substitua o bandeirinha na análise dos lances que este, na maioria das vezes, não é capaz de julgar correctamente. Com o fim do fiscal de linha, será possível a introdução de um ou dois árbitros de campo, continuando a salvaguardar o factor humano como forma de preservar o encanto do futebol... Foi bola na mão ou mão na bola? Respostas a perguntas como esta devem pertencer exclusivamente aos homens do apito, in loco e com base na sua experiência e instinto. As repetições via TV ficam para quem está em casa. Não têm lugar num campo de futebol, embora, do ponto de vista tecnológico e logístico fosse relativamente simples fazê-lo em competições fechadas, como o próximo Mundial 2010.

É uma incógnita o que os homens do futebol têm em mente para o futuro da arbitragem com usufruto tecnológico. No entanto, de uma coisa estou seguro, a única forma da tecnologia prejudicar o futebol é continuando a ignorá-la. Não validar um golo na sequência de um remate a trinta metros da baliza, porque não foi possível confirmar que a bola entrou, isso sim, é um atentado à pureza do jogo.

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